É sabido que o instituto da recuperação judicial visa evitar a falência, mediante a reestruturação das dívidas da empresa, o que possibilita a continuidade operacional do empreendimento e, consequentemente, otimiza a destinação econômica dos seus ativos. Evidentemente, o que se leva como mantra para tais processos é a superação de crises para preservação do negócio viável.
Daí que se extrai o racional do princípio da preservação da empresa, previsto no art. 47 da LFRE:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Essa “superação” ficou estruturada implicitamente pela Legislação Brasileira em, pelo menos, cinco fases distintas: (1) pré-ajuizamento (cautelar); (2) ajuizamento do pedido recuperacional; (3) deferimento do seu processamento; (4) concessão da recuperação; e (5) encerramento do processo, após o período de fiscalização judicial.
Justamente entre as fases de deferimento do processamento e da sua concessão, reside a apresentação do Plano de Recuperação Judicial, o qual depende da aprovação dos credores, observados os quóruns legais. O efeito jurídico do referido plano é uma verdadeira repactuação geral do passivo, com a estruturação dos mecanismos que garantirão a superação da crise, tais como moratória, haircut, carência, arrendamento de ativos, DIP Finance, dentre outros. Trata-se, no final das contas, de uma grande novação.
Neste ambiente de negociação coletiva, vigora a soberania da assembleia geral de credores sobre o conteúdo que ali se deliberou. Aprovado pela assembleia, o plano é submetido ao juiz de direito para que exerça o controle de legalidade e, assim, homologue e conceda a Recuperação Judicial, se for o caso.
Acontece que, como qualquer tratamento, é possível que o resultado esperado e planejado não seja alcançado e, com isso, haja o descumprimento do plano de recuperação em um ponto ou outro. Nesse caso, a Legislação prevê que deverá ocorrer a decretação da falência, por meio da convolação, conforme disciplina dos arts. 61, §1º e 73, IV, ambos da Lei 11.101/2005.
Art. 61. [….] § 1º Durante o período estabelecido no caput deste artigo, o descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano acarretará a convolação da recuperação em falência, nos termos do art. 73 desta Lei.
Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial: […] IV – por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de recuperação, na forma do § 1º do art. 61 desta Lei.
Da prática forense, contudo, percebeu-se um aumento contínuo da inserção, no próprio plano de recuperação judicial, de cláusula alternativa à rigidez legal, de modo a possibilitar que, caso haja descumprimento do plano, promova-se uma nova Assembleia Geral de Credores (AGC) para deliberar a respeito, antes que se realize a automática convolação da falência.
Aqui, um exemplo de tal disposição:
Caso haja o descumprimento de qualquer obrigação prevista no Plano de Recuperação Judicial, não será decretada a falência da recuperanda, sem que se promova a convocação prévia de nova Assembleia Geral de Credores, que deverá ser requerida ao juízo universal da recuperação, no prazo de 30 (trinta) dias a contar do evento de inadimplência, para que se delibere quanto à solução adotada.
Note que, ao passo que a Lei faz menção clara e objetiva de que o descumprimento do plano acarretará na falência, a assembleia geral de credores deliberou taxativamente que não será decretada falência sem que antes haja nova deliberação.
Com os olhos voltados aos princípios da preservação da empresa e da soberania da deliberação assemblear, parece-nos prudente haver uma medida alternativa ao encerramento absoluto das atividades, cabendo aqui lembrar que a falência naturalmente implicará, dentre outras consequências, na rescisão de contratos de trabalho, cessação do recolhimento de tributos e muito provavelmente na frustração de uma série de créditos certos, líquidos e exigíveis.
Obviamente, esse tema vem sendo objeto de análise por parte do Judiciário há alguns anos, que avalia a referida disposição assemblear sobre o prisma da legalidade. Afinal, pode o plano limitar o efeito jurídico automático previsto na Lei?
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), por exemplo, possui algumas decisões no sentido de vedar tal disposição no planos de recuperação. Veja aqui casos de 2020, 2021, 2022 e 2023:
CLÁUSULA QUE CONDICIONOU A DECRETAÇÃO DE FALÊNCIA EM CASO DE DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS NO PLANO À CONVOCAÇÃO E DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. VIOLAÇÃO À DISPOSIÇÃO LEGAL. ARTIGOS 61 PARÁGRAFO PRIMEIRO E 73, INCISO IV, DA LEI 11.101/2005. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 4006639-93.2018.8.24.0000, de Itajaí, rel. Cláudio Barreto Dutra, Quinta Câmara de Direito Comercial, j. 19-11-2020).
CLÁUSULA QUE CONDICIONA A DECRETAÇÃO DE FALÊNCIA, EM CASO DE DESCUMPRIMENTO DE QUAISQUER DAS OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS NO PLANO À CONVOCAÇÃO DE NOVA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. VIOLAÇÃO AO DISPOSITIVO LEGAL. ART. 61, § 1º E 73, IV, DA LEI 11.101/05. DECISÃO MANTIDA. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 4005556-71.2020.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Sérgio Izidoro Heil, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 30-03-2021).
PREVISÃO DE CONVOCAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES EM CASO DE DESCUMPRIMENTO OU MODIFICAÇÃO DO PLANO. DETERMINAÇÃO CONTRÁRIA AOS ARTS. 61, §1º E 73, IV, DA LEI 11.101/2005. ADEQUADA A DETERMINAÇÃO DE EXCLUSÃO DA CLÁUSULA DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 4023938-49.2019.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Jaime Machado Junior, Terceira Câmara de Direito Comercial, j. 11-08-2022).
DEFENDIDA A LEGALIDADE DA CLÁUSULA QUE PREVÊ A CONVOCAÇÃO DE ASSEMBLEIA-GERAL DE CREDORES PARA A HIPÓTESE DE DESCUMPRIMENTO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INSUBSISTÊNCIA. VIOLAÇÃO AO DISPOSTO NOS ARTS. 61, § 1º, 62 E 73, INC. IV, DA LEI N. 11.101/2005. ILEGALIDADE MANIFESTA. RECURSO DESPROVIDO NESTE TEMA. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 5061275-84.2021.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Mariano do Nascimento, Primeira Câmara de Direito Comercial, j. 02-02-2023).
De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no dia 23-04-2024, que as cláusulas que possibilitam nova convocação da Assembleia Geral de Credores (AGC) são válidas, hipótese em que não se deve proceder à imediata conversão da recuperação em falência.
A decisão é da Quarta Turma, no REsp 1830550/SP, de Relatoria do Ministro Antônio Carlos Ferreira, e analisava decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que, no mesmo sentido assinalado pelo Tribunal Catarinense, entendia que a imposição de realização de nova assembleia em caso de descumprimento “viola o disposto nos artigos 61, §1º e 73, inciso IV da Lei 11.101/2005”, isso porque, como não há previsão legal de nova designação de assembleia, qualquer disposição do Plano de Recuperação nesse sentido é nula e deve ser afastada.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO. NOVAÇÃO. EXTENSÃO. COOBRIGADOS. IMPOSSIBILIDADE. GARANTIAS. SUPRESSÃO. CONSENTIMENTO. CREDOR TITULAR. REGULARIDADE FISCAL. COMPROVAÇÃO. DESNECESSIDADE. CLÁUSULA. NOVA CONVOCAÇÃO. ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO. LEGALIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. […]. 3. No âmbito do processo de recuperação, é soberana a deliberação da Assembleia Geral de Credores relativa ao conteúdo do Plano de Recuperação Judicial. Ao magistrado compete exclusivamente a avaliação da conformidade legal do ato jurídico, fundamentado no interesse público refletido no Princípio da Preservação da Empresa e na consequente manutenção dos empregos e das fontes de produção. 3.1. Nesse contexto, deve ser considerada válida cláusula que possibilita nova convocação da Assembleia Geral de Credores em caso de descumprimento do Plano de Recuperação Judicial, em vez da imediata conversão em falência. 4. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.830.550/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 30/4/2024.)
A Turma entendeu que as disposições dos artigos 61, §1º e 73, IV da Lei de Falências não são normas imperativas, de modo que devem ser interpretadas à luz do propósito do legislador, ou seja, voltam-se os olhos ao racional da superação das crises para viabilizar a preservação da empresa. Dessa forma, as cláusulas que preveem a convocação de nova assembleia de credores na hipótese de descumprimento do plano de recuperação judicial devem ser entendidas como abarcadas no âmbito de liberdade negocial.
Kaio Henrique Zandavalli. Advogado. Sócio na BCK Advogados. LL.M (Master of Laws) em Direito Societário pelo Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo (INSPER/SP). Graduado pela Universidade Regional de Blumenau (FURB), pós-graduado em direito cível e empresarial pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), com educação executiva em Fusões e Aquisições de Empresas (M&A), pelo INSPER/SP, e em Recuperação Judicial de Empresas, pelo INSPER/SP. Diretor Jurídico da Associação Empresarial de Palhoça (ACIP) e membro do Comitê Jurídico da Federação das Associações Empresariais de Santa Catarina (FACISC), com ênfase de atuação na Advocacia Consultiva e Contenciosa em Direito Empresarial.
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